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23/08/2006 » Todas as notícias
RACISMO: Estatuto da Igualdade Racial

RACISMO: Estatuto da Igualdade Racial

Pedro C. Chadarevian

Uma das primeiras vozes a alertar sobre a falácia da abolição da escravatura no Brasil foi Machado de Assis (em seu Memorial de Aires, de 1908). De modo irônico e discreto, como era de seu feitio, o autor lamentava que o debate tivesse se orientado em torno da necessidade de se compensar os proprietários de escravos, e não os negros libertos e abandonados à sua própria sorte. Passados quase cem anos, pouco ou nada foi feito para compensar um dos maiores crimes cometidos contra um povo - a escravidão. Pior, durante ao menos cinqüenta anos que se seguiram à abolição, o negro brasileiro foi alvo de uma campanha na qual se envolveram intelectuais, cientistas sociais e membros do governo, no sentido de estigmatizá-los como inferiores. Com o processo de industrialização, há uma crença generalizada na integração do negro na sociedade de classes. Esta visão, dominante no pensamento social de 1945 a 1964, se baseava em uma concepção meramente fenomenológica do preconceito, sem procurar entender a sua manifestação no mercado de trabalho. Como resultado, as políticas públicas do período ficam restritas à criminalização da ideologia do preconceito racial, com a criação da chamada Lei Afonso Arinos. Ao mesmo tempo, dá-se a proletarização do negro, ainda limitada, pois dificultam a ele o acesso a funções e postos privilegiados da empresa. Isto se acompanha de uma gradual integração política do negro e, apesar de tudo, o momento era visto como uma evolução em relação à era do "racismo científico". Mas este processo é drasticamente abortado com o golpe de 64. Os militares proibiriam todo debate sobre o racismo, e adotariam o mito da democracia racial como discurso oficial.

MEDIDAS COMPENSATÓRIAS

Enquanto isso, nos Estados Unidos, naquele mesmo ano de 64, como conseqüência da radicalização do protesto negro, o Congresso aprovava um novo código dos direitos civis, abolindo o sistema de segregação até então existente, e abrindo caminho para a elaboração de medidas compensatórias. A principal delas institui um organismo federal, empregando centenas de funcionários, com o objetivo de analisar as queixas contra discriminação no trabalho. Estas são da ordem de 28.000 por ano, das quais mil são julgadas pertinentes, incorrendo em multas aos empregadores que acumulam cerca de dois bilhões de dólares nos últimos dez anos. Este mecanismo trouxe o resultado esperado: passados quarenta anos, os negros puderam ascender aos mais altos postos em todas as carreiras do mercado de trabalho. Note-se que o princípio desta política não tem nada de "socialista"; a justificativa para defendê-la à época foi totalmente capitalista: a necessidade de se estimular a demanda de um segmento da população que, submetido às regras do mercado, estava condenado à marginalização. Não é necessário elencar aqui um sem-número de estatísticas para se demonstrar o rígido quadro de hierarquização racial da sociedade brasileira nos dias de hoje. Basta que o leitor olhe para os lados. Ou melhor para cima: a elite brasileira continua sendo um monopólio de brancos. Se, até meados do século 20, o Brasil era visto como um paraíso das relações raciais - e os Estados Unidos como um verdadeiro inferno; hoje a situação inverteu-se, ao menos em relação à distância que separa brancos e negros no mercado de trabalho.

IGUALDADE RACIAL

Mas, leitor, não se surpreenda se lhe dissermos que um instrumento para corrigir este problema existe, e está atualmente em discussão no Congresso Nacional. Trata-se do Estatuto da Igualdade Racial. O projeto em questão procura atender a reivindicações históricas do movimento negro brasileiro, legítimo representante de negros e mestiços em um país no qual ao menos metade da população se considera como tais. Dentre os pontos que se podem destacar está exatamente a exigência de maior equilíbrio na representatividade racial dos trabalhadores nas empresas. Esta medida, também conhecida por cotas, ataca a raiz do problema do racismo na sociedade brasileira, controlando a atuação de mecanismos de discriminação na seleção, demissão e evolução do trabalhador na empresa. E, por promover uma reforma (digo reforma, não revolução) na forma como se regula a distribuição dos postos de trabalho, e portanto da renda, o projeto tem provocado resistências injustificadas. Tem-se alegado, de forma equivocada, que as medidas 1) limitam o caráter meritocrático do mercado de trabalho - o que é falso, a menos que se admita que os negros mereçam ganhar menos ou ser pobres; 2) geram mais preconceito na sociedade - argumento sem fundamento, basta ver a situação nos países que adotaram medidas semelhantes; e 3) são ineficientes para a economia - pelo contrário, combater a discriminação melhora a vida (e a renda) das pessoas. As conseqüências do tom enviesado que tem orientado o debate - especialmente nos editoriais da grande imprensa - ameaça a própria sobrevivência do projeto, já bastante desfigurado após as emendas recebidas no Senado. O momento pede o apoio e a mobilização de todas as partes interessadas em promover reformas verdadeiramente progressistas para o futuro da nação.

Pedro C. Chadarevian - É mestre em Economia pela Universidade de São Paulo e doutorando em Economia na Universidade de Paris

Enviada por Pedro C. Chadarevian
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