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23/08/2006 » Todas as notícias
Brasil: da luta social à luta racial

Brasil: da luta social à luta racial

Mário Maestri - Fonte: Correio da Cidadania

Em 29 de junho, os presidentes da Câmara e do Senado receberam manifesto contra os Projetos de Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, que propõem privilégios raciais no ensino público e incentivos a empresas que apliquem essa orientação. O documento defende que a discriminação positiva de brasileiros com alguma afro-ascendência legaliza privilégios baseados na cor, ferindo o “princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos".

Os signatários do documento defendem a “construção de serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de empregos”, e que os projetos de lei acirram o “conflito” e a “intolerância” raciais. A declaração motivou nutridas respostas que, como habitual, reafirmaram as bondades das propostas e qualificaram a oposição a elas como, no mínimo, reações do elitismo branco.

A discriminação racial positiva possui argumentos aparentemente irretorquíveis. Devido ao passado escravista, os negros seriam explorados pelos brancos desde a fundação do Brasil. A situação de discriminação racial é dado objetivo possível de ser equilibrada apenas por discriminação positiva. Não podemos esperar os resultados de medidas universais – educação, saúde etc. – que, sugere-se, não alcançariam resultados para a população negra. Elas deveriam ser substituídas por ações focalizadas.

É indiscutível que o afro-descendente constitui parte fundamental dos setores mais explorados e que o racismo segue motivando violências materiais e espirituais. Porém, as propostas de combate a essa realidade materializam projetos e interesses diversos. A defesa de discriminação racial positiva constitui a ponta de lança de programa de reorganização racial da sociedade brasileira de graves conseqüências.

A quem interessa?

Mais de três décadas após a aplicação de vasto programa de discriminação racial positiva, a população afro-estadunidense pobre vive mergulhada na miséria relativa e absoluta e perde posições em comparação aos latinos e asiáticos. A prisão é hoje a grande solução para a questão negra nos EUA que, com 5% da população do planeta, possui 20% dos encarcerados. Deles, 50% são negros! No país mais rico do mundo, o jovem negro acaba normalmente nos braços da prisão e da droga e dificilmente em uma universidade ou emprego razoável.

Não é um paradoxo que uma política fracassada seja apresentada no Brasil como panacéia dos males afro-brasileiros, já que, nos EUA, obteve seus objetivos reais, ou seja, aliviar sem solucionar as tensões sociais. O mito fundador estadunidense é a premiação do valor individual intrínseco na competição social, realidade que dividiria a sociedade em winners – vencedores – e losers – perdedores. O sucesso dos descendentes de anglo-saxões comprovaria apenas a superioridade branca sobre as raças africana, ameríndia, latina etc. Essa concepção é apoiada por aristocracia operária branca – “blue collars” – favorável à opressão imperialista externa e social interna.

Até a II Guerra, a violência social, policial e jurídica manteve a opressão da população de cor, essencial à super-exploração do trabalhador estadunidense. Nos anos 1950, a luta pela libertação nacional africana e, a seguir, a ascensão da mobilização social mundial contribuíram para a radicalização dos afro-estadunidenses. Em plena Guerra Fria, o fato de que todos os postos de mando fossem ocupados quase exclusivamente por brancos desvelava impudicamente as violências da democracia estadunidense.

Muito logo, generalizou-se a consciência da inapelável condenação da comunidade afro-estadunidense ao fracasso devido às seqüelas da escravidão, apesar de a historiografia daquele país traçar cenários verdadeiramente idílicos do passado escravista, ao igual do que ocorre atualmente no Brasil. Impunham-se, portanto, medidas que desarmassem a crescente mobilização afro-estadunidense.

Para que nada mude

O capital opõe-se aos direitos sociais universais, pelos seus custos econômicos, políticos e ideológicos. Apoiado em ideário igualitarista, os trabalhadores europeus conquistaram direitos sociais universais e gratuitos – saúde, educação, emprego etc. A fragilidade dos trabalhadores estadunidenses ensejou que as caras políticas universais fossem substituídas por facilidades pontuais para membros das minorias nas universidades, serviços públicos etc.

Em vez de investimentos sociais maciços e modificações nas relações sociais, promoveu-se a progressão de alguns indivíduos das comunidades marginalizadas. Ao enegrecer relativamente a parte visível do Estado, Exército, mídia etc., a política das cotas mitigava grave contradição da apologia do capitalismo e ampliava seu apoio entre os afro-estadunidenses. A operação estendia a esses últimos o mito da vitória pelos méritos individuais, ao favorecer a formação de classe média negra, ainda que raquítica, não raro fortemente preconceituosa com o sub-proletariado negro, devido à constrangedora proximidade com ele.

Nos anos 1950, na Coréia, em nome da liberdade, generais brancos comandaram o ataque a amarelos diabolizados. Em 2006, midiáticos generais negros e latinos prestam igual serviço em forma racialmente correta. Ontem e hoje, os soldados estadunidenses que retornam mortos e estropiados continuam sendo, sobretudo, negros, latinos, asiáticos etc., arrolados pelo açoite da necessidade econômica.

A ilusão sobre mundo formado por grupos raciais, de culturas e valores únicos, que negociam através de seus líderes seus direitos, contribui para que o trabalhador estadunidense não tome consciência de suas necessidades. Aquela sociedade segue ignorando o princípio da solidariedade entre cidadãos irmanados por território, história, costumes etc. comuns ou concorrentes, pois não consegue repousar sua identidade nacional no trabalho, categoria socializadora das diversidades humanas.

Brasil: a cor da exploração

No passado, a necessidade de incorporar extra-europeus ao sistema de domínio colonial lusitano impediu que aquelas classes dominantes assentassem sua dominação, como nas colônias anglo-saxônicas, também sobre a retórica do exclusivismo racial. Sequer o império brasileiro, também despoticamente apoiado na escravidão negra, incorporou em sua Constituição referências à diversidade das raças.

Sobretudo após 1930, a ideologia da identidade nacional foi o discurso dominante no Brasil, que não excluía propostas de hierarquia racial e social. O conceito de comunidade nacional assumiu conteúdo progressista no contexto da conformação multirracial das classes trabalhadoras brasileiras, formadas por descendentes de europeus, nativos, africanos e multidões de indivíduos nascidos da miscigenação dessas e de outras comunidades.

No Brasil moderno, jamais houve exclusivismo racial na exploração do mundo do trabalho, mesmo cabendo em algumas regiões o papel de sub-proletariado sobretudo à população negra. A divisão do país em brancos exploradores e negros explorados é sandice ideológica apoiada em manipulação rústica das estatísticas, como assinalado no brilhante artigo de César Benjamin “Racismo não” (Caros Amigos, setembro de 2002). É também capenga a proposta de trabalhador branco privilegiado pela super-exploração do negro que, na realidade, desqualifica o valor e a capacidade contratual geral do trabalho.

A racialização da sociedade brasileira é exotismo político introduzido nos anos 1990 por organizações estadunidenses desinteressadas como a Ford Foundation. Ela anunciou o fim das classes e proclamou que também o Brasil, ao igual que o grande irmão do Norte, seria formado, não por classes sociais, mas por comunidades de descendentes de africanos, lusitanos, italianos etc., coeridas por valores culturais únicos e estranhos aos dos outros grupos étnicos.

Luta racial

No novo cenário de luta racial, a questão não seria mais pôr fim à exploração social, mas democratizar racialmente o privilégio. A luta racial justificaria a progressão de indivíduos singulares, mesmo à custa da opressão, nem que seja para melhorar a “auto-estima” de membros de sua comunidade que permanecerão mergulhados na marginalidade. Um afro ou luso-descendente morando em cobertura da Vieira Souto seria conquista para os seus irmãos de raça condenados a morar até a morte em barracos na Rocinha.

A proposta de racialização da sociedade brasileira penetrou como faca quente em manteiga fresca, devido à violenta depressão dos valores universalistas, racionalistas, socialistas etc., motivada pela vitória da contra-revolução neoliberal em fins dos anos 1980. Amplos setores da esquerda aceitaram-na sem crítica, como parte das novas e antigas sensibilidades ambientalistas, feministas, anti-racistas etc.

O movimento negro que, ao igual que os outros setores da esquerda no Brasil, sempre penou para estabelecer laços com a população marginalizada, substancia a proposta de racialização da sociedade que lhe prometia funções representativas diante do Estado e conquistas pontuais sobretudo para seus segmentos médios, mesmo que nada oferecesse à imensa população afro-descendente marginalizada. Desde então, para o gáudio do grande capital, consolida-se a proposta de luta social isolada pela divisão racial da miséria, em vez de combate unitário pelos amplos e gerais direitos da população.

Mário Maestri dedica-se, há trinta anos, à história social da escravidão negra no Brasil. Escreveu, entre outros, O escravismo no Brasil, publicado pela Editora Atual

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